Pururu

Como advogado do Estado, é comum pegar casos perdidos de pessoas que não tem condições de pagar alguém que os defenda. Na maior parte das vezes, pego caso de indigentes, moradores de rua que nem sequer tem algum documento, e na maioria, muitos não sentem vergonha do que fazem, seja por revolta ou por prazer mesmo.
Também é de minha função prestar assistência a criminosos confessos que parecem sentir orgulho de trilhar tal caminho. Já fui obrigado (ao menos fingir que tentava) um indivíduo (me recuso a chama-lo de homem) que fora acusado de assassinato, roubo e estupro. Em nossa conversa inicial, na qual uso para conhecer o cliente, a criatura disse que ao sair continuaria a fazer as mesmas coisas, pois era isso que gostava de fazer na vida. Claro que não fiz muito esforço para defende-lo, não queria culpa em minhas mãos.
Entretanto, eu peguei um caso perdido, um caso de repercussão pública. Evidentemente o sujeito já era culpado pela mídia, o que me deixou mais interessado nesse caso. Teria ao menos a oportunidade de ouvir a versão dele e confirmar se ele era um bode expiatório ou realmente culpado. Mas até hoje, tenho dúvidas sobre aquele caso. Antes que eu responda o que aconteceu, deixe-me contar como foi nosso relacionamento.
Parecia que seria um caso daqueles. A mídia matando o cara e eu fingindo que defendia e tentar escapar dos holofotes. Contudo, fiquei surpreso em nosso primeiro contato. Algo me atraiu, uma comichão dizendo que aquele caso prometia. Seria diferente dos outros que já havia participado. não sei se foi coincidência, ainda mais porque acreditava que isso só me vinha à cabeça pelo fato de ser um caso de grande repercussão.
Apesar de já estar acostumado a frequentar presídios, ainda não havia provado daquela experiência. Como era um astro da televisão, ele não poderia ficar junto de outros presos, tinham um cuidado com ele que não tinham com os demais. Sem contar o fato de que ele não poderia morrer na prisão enquanto as luzes estavam nele. Na nossa sala de reunião, em nossa primeira conversa eu vi o sujeito, parado, olhando o nada, guarnecido por dois seguranças preparados para uma rebelião. Mas o nosso astro, estava tranquilo, admirando o nada. Fazia-me acreditar que tudo ocorria como ele planejara. Deu um nó na garganta. Por um instante acreditei no que diziam a seu respeito.
Ficamos frente à frente. O nó na garganta voltara. Quando peguei minha maleta para discutir o caso ele disse:

- Não adianta. Sei que você está cumprindo seu dever. O Estado finge que se importa, mas não adianta. Eu matei aquelas pessoas, confessei, não estou louco, não quero piedade, muito menos fingimento de piedade.

Dessa vez eu o interrompi e tentei-lhe explicar, mas ele estava certo. Eu estava formalmente lá. Entendi de imediato a mensagem. Não fiquei irritado, mas me senti desmascarado. Insisti mais um pouco. Não deu certo. Ele já estava convencido. Parecia que eu estava tentando converter um ateu. Interessante que meus argumentos não superavam os dele. Não posso dizer o que realmente houve ali, estou tentando entender até hoje, mas eu queria voltar. Eu queria entender esse caso.
Não hesitei em voltar no dia seguinte, mesmo que meu cliente não aprovasse ou não quisesse. A mídia não sabia da relutância dele em aceitar os meus serviços, e isso era bom, me dava mais tempo de compreender o que se passava ali. E no dia seguinte ele continuava assumindo que era culpado, não queria misericórdia, queria cumprir sua pena. Eu já estava acreditando em sua versão até que consegui falar com sua mãe. Era uma senhora nova, ao que parece, o tivera antes dos 20. Ela disse-me nada além de perguntar por Pururu. Eu estava pensando em que diabos de senha seria essa. Na verdade, me pareceu de primeira uma espécie de palavra chave de controle mental (se bem que foi quase isso).
Era uma quarta feira, minha última tentativa, afinal, já não aguentava mais tanta recusa. De início, eu evitei usar a palavra. Imaginara que era um doidura. Mas me rendi, uma vez que era melhor tentar isso do que dar explicações a imprensa. Falei, perguntei sobre o Pururu e aí recebi uma resposta:
- Foi esse o início da história. Você realmente se importa?
Fiquei calado, não queria parecer falso. Com certeza ele perceberia. Estava curioso, não sabia se era uma boa comentar isso com ele. Ao que parece, ele entendeu minha sinceridade e soltou a história. Alguns anos antes ele tinha um gato, Pururu era seu nome. Não tinha uma das patas dianteiras, a esquerda, era uma gato tímido, tinha medo de gente, mas bem bonito (toda essa descrição era dele), gostava de janelas e lugares altos. Era o único amigo do acusado em sua infância.
Ele dissera que tinha um tio violento, toda vez que era visitado por esse tio, alguma coisa lhe acontecia: um olho roxo, um corte no lábio, uma perna machucada. Contou-me que era franzino e não tinha forças para reagir. Contava à mãe, mas esta dizia-lhe que ele próprio era o culpado, o tio apenas estava disciplinando. Encontrava alegria em seu amigo de três patas o qual parecia ser um totem de refúgio. Era com quem se sentia à vontade, sem repressões ou agressões.
O tal tio tinha filhos, mais novos que o acusado na época. Tinham por volta de oito, nove anos. Eram bem mimados. Começaram a perturbar o tal gato. Meu cliente disse que partira em defesa de seu amigo. Já não bastava ele sofrer o bastante, seu bicho não deveria sofrer como ele. O menino bateu em seus primos, o que lhe custou dois dentes e a sanidade. Seu tio o esmurrou com força, bastante o que lhe arrancou dois dentes. Sua mãe não estava em casa na hora, mas quando chegou, aceitou a versão de um acidente no quintal (o qual ele não quis contar, mas disse que era ridículo demais para alguém acreditar).
Ele disse que permanecera calado. Se preocupava apenas se Pururu estava bem, o que não durou até sexta. O tio voltou, era um dia aleatório, não avisara, apenas chegou. Arrastou o garoto com um braço e o gato no outro. O levou para o quintal, o deixou sentado no chão amarrado apesar dos protestos do garoto. Pegou uma furadeira de sua mochila com a mão direita e com a mão esquerda segurava o gato. Colocou-o na mesa de churrasco e o furou, em frente ao dono. Ele me disse que fora a última vez chorara, mas nunca se esquecera do sorriso maldoso do tio. Jurou vingança, não foi ouvido por seu carrasco.
Seu mundo parou ali. Perdera seu amigo, perdera sua vida, perdera sua sanidade. Começou a viver em função de sua vingança. Não falara mais nada depois. Não protestava ao receber seus socos, pontapés, suas humilhações. À medida que ia crescendo seu plano chegava mais perto da conclusão. Como era franzino, entrou para o exército para se preparar sem que houvesse suspeitas. Treinou combate corpo a corpo, manejo de armas, fortaleceu o corpo (ao que parece a mente não ficou forte, já perdera a base há muito tempo). Descobriu meios de onde conseguir seus objetos, até que um mês atrás ele realizou seu objetivo.
- É aqui que você vai entender porque não quero defesa. Eu convidei esse tio e sua família como se fosse minha mãe. Dei o recado, parecendo que era ela quem convidou. Falei com minha mãe como se ele tivesse avisado que iria passar o fim de semana lá. Providenciei minhas ferramentas em uma casa de ferragens. Pá, serrote, enxada e furadeira. Consegui com um traficante local um sedativo, coloquei na comida de todos. Os levei para uma chácara alugada e os deixei amarrados dormindo e os esperei acordar. A mulher do irmão da minha mãe foi a que mais gritou, dei um tapa na cara dela para que calasse.
Ele deu uma engasgada e continuou:
- Comecei pelos filhos do desgraçado. Eu esqueci de mencionar, mas encontrei dois gatos selvagens. Os achei caçando, levou alguns meses, mas achei. Não estaria realizado se não os tivesse em meu poder. Puxei os filhos do desgraçado pelo cabelo. Ambos me xingando e me ameaçando. Agora eu sei o que ele sentiu quando eu o ameacei naquele dia, quando falei que o faria pagar. A diferença aqui é que aqueles dois não terão a oportunidade. Os joguei no cercado onde estavam os gatos. Foram as mortes mais demoradas, ao menos tive essa impressão, os gatos demoraram a mutilar os corpos e a comer. Quando a mulher do desgraçado desmaiava, eu a acordava e fazia o mesmo com minha mãe, até que os filhos do casal maldito já não respirasse. Confesso que achei divertido ver o desespero de ambos, pedindo por perdão e misericórdia e disse que isso eles não teriam. Deus estava de folga naquele dia.
- Passei para a mulher. Amarrei-a à mesa e fui cortando seus membros um a um. Ela desmaiava de dor, mas eu já havia me preparado para isso. A acordava e começávamos tudo de novo. Se bem que acredito que ela já perdera sua vida momentos antes ao ver ambos os filhos mortos. Minha mãe pedia socorro, o desgraçado falava que eu queimaria no inferno. Gostei de responder que o inferno já era meu habitat graças a ele. O idiota desistiu de falar. A “tia” (neste momento fez o gesto de aspas com a mão) não resistiu e morreu enquanto eu ainda tirava o primeiro braço, o esquerdo.  Assim mesmo terminei de tirar o braço e tirei o que faltava também. Usei os membros fora do corpo para surrar o bastardo. Lógico que não o deixa desmaiar.
- Enquanto estava sentado na cadeira, já espancado pelos membros de sua esposa vadia. Eu peguei a furadeira e furei as mãos, pernas, pés, braços, barriga e até que para o final, furei o olho. Como sabia que iria mata-lo, aproximava e distanciava a furadeira ligada. Ele tentava reagir, mas era inútil, eu sabia como dar um nó. Furei o olho do infeliz e sacudi a furadeira. Confesso que estava ensandecido, mas era aquilo que eu estava esperando. Por anos a fio, eu planejava, eu precisava que ele tivesse sua punição. Você deve estar se perguntando sobre minha mãe. Ela viu tudo. Eu quis que visse e no final, eu a joguei no chão e disse que ela era culpada por permitir que aquilo acontecesse. A soltei, deixei ir e fazer a denúncia anônima que você deve ter visto nos meios de comunicação. Não há salvação para mim, vou preso, estou são, e aproveitarei e tentarei morrer na cadeia tentando levar alguns comigo. Não tenho vida desde que Pururu se foi.
Ao terminar, eu não sabia o que dizer. Não encontrava palavras para responder, dar algumas palavras de consolo, nem mesmo um sinto muito. Isso explica a reação da mãe dele quando fui visita-la. Parecia alguém que estivesse com o peso do mundo nas costas. E de fato estava com quatro vidas nas costas. Eu acredito na versão de meu cliente. Foi a primeira vez que não duvidei e continuarei acreditando. Talvez, a mãe dele, por ser religiosa, não cometerá suicídio, mas está fadada a viver em um inferno pessoal. Ainda assim, tentei trabalhar em sua defesa. Lutei mesmo, mas em vão, afinal era um caso perdido, a mídia o havia condenado, só eu estava do seu lado. Acredito que nem o Diabo o queira no inferno de tão rejeitado estava.

Percebi que ali, não era um homem que estava me contando a história, mas um garotinho de 12 anos que perdera sua chance de ter uma vida feliz. Ele pode ter crescido em corpo, mas ficou preso naquele dia fatídico. Não existe pena de morte, mas acho que se tivesse, ele não queria pelo fato de ter uma morte lenta pelo que fez. Já faz alguns anos desde esse caso. Ainda trocamos cartas, mas tem sido cada vez menos frequente porque sempre muda de prisão para que não mate mais prisioneiros.

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